Sobre a contradição de Lula

Tirei mais de duas horas da minha manhã para ouvir o episódio do podcast Mano a Mano com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Terminei exatamente como imaginei que terminaria: irritada. Achei que isso se daria por uma ausência de projeto com objetos claros de desejo político, mas nem precisei chegar tão longe. O episódio escancara uma contradição que Lula ou não enxerga, ou não quer enxergar: os desejos políticos que ele verbaliza, desconectados de qualquer projeto articulado, dependem fundamentalmente de uma relação com o Congresso que simplesmente não existe. E não existe, em grande parte, porque Lula já não demonstra disposição real para governar.
Vou usar um exemplo para ilustrar meu argumento: grande parte do que Lula promete – inclusive a tão mencionada isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil – depende da aprovação de medidas que abram espaço no orçamento. O país enfrenta uma crise fiscal que se arrasta há pelo menos uma década. Em uma missão quase suicida, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, editou um decreto sobre o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) como alternativa para reequilibrar as contas públicas. A proposta prevê a criação de novas alíquotas de IOF, com a expectativa de gerar uma arrecadação adicional de R$ 10 bilhões.
A reação da Câmara dos Deputados foi das piores. O presidente da Casa, Hugo Motta, junto com os líderes partidários, chegou a dar um ultimato ao governo, concedendo 15 dias para que apresentasse outra proposta. O governo ganhou tempo, mas nesta mesma semana, a Câmara aprovou um requerimento de urgência (mecanismo que acelera a tramitação legislativa) para derrubar o decreto de Haddad. A votação, em que o governo foi derrotado por 346 votos a 97, foi chamada por Motta de um “recado claro da sociedade”. O mais absurdo: o próprio líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), liberou a base para votar como quisesse. Nem o governo parece acreditar no próprio governo. No Senado, a oposição já dá como certa a queda do decreto.
No Mano a Mano, Lula fala como se estivesse no controle do país. Mas a realidade é outra: ele não tem comando nem sobre o Congresso, nem sobre o próprio governo. Há, na prática, vários governos que não se comunicam entre si — com um chefe da Casa Civil que desaparece com projetos, uma articuladora política mais preocupada em apagar incêndios do que em articular de fato, e um presidente quase ausente. Lula parece mais interessado em circular pelo mundo e tirar selfies com o presidente da França, Emmanuel Macron. Diante desse cenário, me vi concordando com um editorialista do Estadão: partidos governistas – inclusive o PT, como fica claro acima — hoje praticam “governismo de oposição”.
A maior contradição de Lula está justamente em lançar ações desconexas sem assumir, de fato, o compromisso de sustentá-las. O discurso não se traduz em prática. E, como nos lembra Hannah Arendt, é na prática que reside o nexo da política.
Um adendo: infelizmente, nem Mano Brown nem Semayat Oliveira confrontam Lula sobre esse ponto. O episódio acabou servindo mais como palanque do que como entrevista. Uma oportunidade desperdiçada.
O presidente que não consegue entender que as circunstâncias não são as mesmas da década passada. Isso para não dizer da condescendência de muitos com os erros de articulação do governo.