Sobre Arendt e política, a última parte
David Lynch produziu uma obra profundamente conectada à experiência de ser humano no mundo moderno. É difícil dizer qual de suas narrativas cinematográficas é a melhor, mas, se eu tivesse que escolher uma para entender o mundo atual, seria Twin Peaks. Não entendo nada de cinema, mas entendo de narrativas. E a que Lynch constrói em Twin Peaks me absorve por completo, assim como Elena Ferrante faz com sua tetralogia napolitana.
No universo da série, duas entidades simbolizam o horror que se manifesta no plano terreno, fora dos lodges: Judi e Bob. A criação de Bob, personagem central da série original exibida na década de 1990, está ligada ao Manhattan Project, responsável pela invenção da bomba atômica. Estou revendo Twin Peaks depois de ter terminado The Promise of Politics, de Hannah Arendt, tentando entender se Lynch nos deixou alguma pista de como habitar um mundo aparentemente governado por Judi e Bob. Ele deixou. Arendt também, nesse mesmo livro.
Antes de falar sobre essas pistas, queria retomar a definição que Arendt dá para o termo “política”.
O que é a política?
No centro da política está a preocupação com o mundo, e não com o homem individualmente. Essa ideia soa até estranha quando pensamos na política de hoje, dominada por líderes personalistas e seus seguidores. Partindo da Grécia antiga, Arendt nos conduz por um raciocínio impressionante para mostrar que o verdadeiro sentido da política é a liberdade. “A política como meio para um fim que está fora dela – a liberdade”, define ela. Mais especificamente, a substância e o significado de tudo que é político residem na liberdade de movimento. Essa liberdade pode se manifestar tanto na criação de algo novo quanto na interação com outras pessoas.
A política acontece exatamente onde criação e interação se encontram. Quando a política se manifesta, surge um espaço entre as pessoas – um espaço que, ao mesmo tempo, as reúne e as separa. Fica claro, então, que no centro da política está a ação. Na Grécia, aliás, a fala era considerada uma forma de ação, o que me parece bastante adequado. Nenhuma ação ocorre isoladamente; por natureza, toda ação incide no mundo e estabelece uma relação com ele. Movida pelo desejo de liberdade de movimento, a ação cria esse novo espaço político, no qual as pessoas se encontram, falam e agem em conjunto, mesmo permanecendo individualmente únicas. É nessa liberdade de movimento que o ser humano pode interagir com os outros sem coerção, força ou dominação. Afinal, a política não nasce da necessidade.
Dessa visão surgem duas definições bonitas de Arendt. A primeira é sobre como podemos, de fato, enxergar e experimentar o mundo:
Se alguém quiser ver e experimentar o mundo como ele “realmente” é, só poderá fazê-lo entendendo-o como algo que é compartilhado por muitas pessoas, que está entre elas, que as separa e as conecta, mostrando-se de forma diferente para cada uma e sendo compreensível apenas na medida em que muitas pessoas possam falar sobre ele e trocar suas opiniões e perspectivas umas com as outras, em oposição umas às outras.
A segunda é sobre como pensar politicamente:
O fator crucial não é que agora se pudesse inverter argumentos e colocar proposições de cabeça para baixo, mas sim que se adquiriu a capacidade de realmente ver os temas por diversos ângulos – ou seja, politicamente – com o resultado de que as pessoas passaram a compreender como assumir as muitas perspectivas possíveis oferecidas pelo mundo real, a partir das quais um mesmo tema pode ser considerado e nas quais cada tema, apesar de sua unidade, aparece em uma grande diversidade de visões. Isso é consideravelmente mais do que simplesmente deixar de lado interesses pessoais, o que resulta apenas em um ganho negativo; além disso, ao cortar os laços com nossos próprios interesses, corremos o risco de perder nossos laços com o mundo e nosso apego aos seus objetos e aos assuntos que nele ocorrem. A capacidade de ver algo a partir de diversos pontos de vista permanece no mundo humano, resultando em uma verdadeira liberdade de movimento em nosso mundo mental que é paralela à nossa liberdade de movimento no mundo físico.
Juntando essas duas definições, penso que Arendt via a política quase como uma faculdade humana, se é que isso faz sentido.
O equilíbrio entre produção e destruição
A questão que Arendt aborda no livro é como a política se afastou de seu sentido original ao longo do tempo, especialmente com a ascensão dos regimes totalitários e a criação da bomba atômica – acontecimentos que marcaram profundamente sua vida. A política deixou de se ocupar com a liberdade e passou a se concentrar no controle absoluto (como nos regimes totalitários) ou na destruição total (como no caso da bomba atômica). Essa combinação de força com poder só poderia surgir no espaço público do Estado, porque é nele que os homens se reúnem e geram poder. O próprio Estado, então, passa a se colocar como problema.
Há um trecho em que Arendt afirma que, no mundo, o equilíbrio entre destruição e reconstrução só pode ser mantido enquanto a tecnologia envolvida se limitar à produção. Desde a descoberta da energia atômica, esse não é mais o caso: agora temos uma tecnologia cuja função é exclusivamente destruir. O capitalismo, por sua vez, agrava esse cenário. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ritmo acelerado de produção e consumo faz com que até a catástrofe pareça supérflua. Outro fenômeno que ela aponta é que produção e destruição têm se tornado indistinguíveis. A destruição de uma casa, por exemplo, torna-se o primeiro estágio na construção de outra. Quem já leu Joseph Schumpeter pensará no conceito de “destruição criativa”. É justamente essa ideia que Arendt está questionando.
Não sei o que Arendt pensaria sobre a inteligência artificial, mas tendo a crer que escreveria muito sobre o assunto. Trata-se de uma tecnologia com potencial tanto produtivo quanto destrutivo e que, aliada ao capitalismo, pode gerar efeitos capazes de transformar completamente o tecido social. José Luis Garcia, colega na Universidade de Lisboa, está escrevendo um livro sobre o tecno-capitalismo – talvez ele tenha respostas para nos dar sobre o que virá pela frente.
Como viver no mundo
Infelizmente, as preocupações de Arendt continuam atuais. O totalitarismo voltou a nos assombrar, agora aliado a um grupo de tech bros que pode usar a tecnologia como instrumento de controle. Os Estados Unidos, em processo de flertar cada vez mais com esse tipo de regime, podem recorrer à energia atômica a qualquer momento – assim como a Rússia, a China ou o Irã. Não sei dizer qual será o cenário quando a inteligência artificial criar robôs capazes de tomar decisões como seres humanos.
Para Arendt, as guerras engendradas por esses atores são catástrofes monstruosas, capazes de transformar o mundo em um deserto e a terra em matéria sem vida. Ela escreve que estamos caminhando para um estado de violência tão profundo que passamos a confundir ação política com violência. Nesse deserto, ocorre uma quebra das relações: abandona-se o espaço “entre” as pessoas que caracteriza a política.
Ela não oferece respostas definitivas para a pergunta sobre se a política ainda faz sentido, mas afirma: “somente aqueles que conseguem suportar a paixão de viver sob condições desérticas podem confiar em si mesmos para convocar a coragem que está na raiz da ação, de se tornarem seres ativos.” Ou seja, o escapismo não é uma opção. Ao escapar, deixamos de lidar com nossas angústias e acabamos levando nossas dúvidas justamente para os lugares de onde deveríamos tirar vida – o que ela chama de “oásis”.
Os oásis são as esferas da vida que existem independentemente da política. “O que deu errado foi a política, nossa existência plural, e não aquilo que podemos fazer e criar na medida em que existimos no singular”, ela escreve. São esses oásis que nos dão forças para viver no deserto sem nos reconciliar com ele. Mas o que são essas esferas? O amor e a amizade. Como ela define: “Quando um coração alcança diretamente o outro, como na amizade, ou quando o ‘entre’ – o mundo – pega fogo, como no amor.”
Arendt fala até de nós, cientistas políticos, que precisamos passar a vida no deserto, sempre preocupados com suas condições. Se não soubermos usar os oásis, acabaremos nos tornando habitantes permanentes do deserto. E, sem a integridade deles, ela escreve, não saberíamos nem como respirar.
Em Twin Peaks, os oásis estão nas mensagens gravadas de Dale Cooper para Diane; no amor de Donna e James, Cooper e Annie, Lucy e Andy, Norma e Ed; na torta de cereja e no café; em Sonny Jim brincando no parquinho; na amizade entre Cooper e Truman, e entre Cooper e Gordon Cole. Em Laura Palmer. Recomendo tanto a série de Lynch quanto o livro de Arendt. Se tivessem se conhecido, acredito que os dois compartilhariam o amor pelo mundo.