Sobre ser mulher
Quantas mortes uma mulher já enfrentou para continuar viva?
Lorena Portela
A pergunta acima aparece no livro Primeiro eu tive que morrer, de Lorena Portela, que eu comprei há dois anos, mas só fui ler recentemente. A leitora desta newsletter deve estar pensando o mesmo que pensei quando li essa pergunta: já morri muitas vezes nessa vida. A mulher se torna mulher morrendo: a menstruação é a morte de algo que tomou vida pela primeira vez dentro do corpo da menina. A partir de então, a mulher morre no mínimo uma vez por mês.
Morre quando tem seu corpo julgado. Morre quando aprende que responsabilidade emocional é coisa de mulher – o homem se retrai, fica em silêncio ou desaparece sem se comunicar. Morre quando sofre assédio sexual no trabalho. Quando sofre abuso emocional e físico em casa. Quando percebe que esperam dela nada menos do que a perfeição. Quando ouve “quando você vai casar?” ou “você não quer ter filhos?”. Quando constata que talvez seja impossível alcançar a plenitude na vida profissional e na pessoal ao mesmo tempo. Morre quando casa ou quando tem filhos. A mulher morre toda vez que precisa ser forte pelos outros, mas principalmente pelos homens. A mulher passa a vida toda morrendo e renascendo para poder existir.
Eu morri diversas vezes no ano passado. E renasci. Como renasceu a minha mãe incontáveis vezes. A maior delas foi quando ela voltou ao trabalho depois de criar três filhos e se estabelecer profissionalmente como se nunca tivesse largado a profissão. Como renasceram todas as minhas amigas próximas, por motivos e através de processos diferentes, mas todas elas reaparecendo mais fortes e vivas. Mais tomadas pela energia extraordinária do feminino. O mais impressionante é que morremos quase sempre sem causar estrago ao nosso redor. De todas as minhas mortes, só duas me tiraram do eixo.
O livro da Lorena fala sobre como isso é possível. Sobre como as mulheres morrem e renascem para carregar o mundo sem abalar estrutura alguma. Os capítulos 22 e 26, que focam na personagem Guida, são os mais bonitos porque tratam da amizade feminina, a instituição que serve de fortaleza para todas as mulheres. São as outras mulheres, as nossas mulheres, que nos seguram para que o mundo à nossa volta não se desintegre mesmo quando nós mesmas estamos nos desintegrando. Esta newsletter é dedicada às minhas mulheres - a minha mãe, Júlia, Camila, Beatriz, Juliana e Daniela.
A imagem acima é o meu quadro preferido de Edward Hopper: Compartment C Car, de 1938. Deixo com vocês um trecho de um poema da poeta norte-americana Fanny Howe chamado Black Mountain Boston:
Look at their faces. Anni Albers has seen everything.
John Cage has not and still has hope.
John Dewey is analytical but his mouth is soft.
Dewey noticed life is education enough.
Can you teach life?
Yes, experiment.
So what is the teacher’s purpose except
To offer a space for failure?
Dewey said, “We get used to the chains we wear.”
O que escrevi, falei ou li sobre política
Estreei uma coluna em formato de podcast no PodNext chamada Politicando, que tem como intuito explicar conceitos importantes da política em linguagem mais acessível. A primeira coluna trata do meu amor pelo Legislativo e a tristeza que senti ao vê-lo sendo destroçado pelos bolsonaristas ensandecidos que invadiram os três poderes no dia 8 de janeiro. No episódio, explico os conceitos de sistema de freios e contrapesos e bem público. A próxima coluna tratará das famosas emendas orçamentárias – o que elas são e por que são tão importantes para o funcionamento da democracia brasileira.
Com Fabiano Santos, publiquei o capítulo “O problema da governabilidade em Lula III” no livro Eleições 2022 e a reconstrução da democracia no Brasil, publicado pela editora Autêntica, que foi lançado em fevereiro.
Publiquei o texto “Os quase-partidos de Jair Bolsonaro” na revista Insight Inteligência. Nele, explico como Jair Bolsonaro se manteve relevante nos últimos quatro anos sem estar filiado a um partido organizado e programático. A resposta: ele se apoiou nos quase-partidos que são as bancadas do agronegócio, evangélica e da segurança pública.
Falei com a DW Brasil sobre a possibilidade de radicalização no Congresso brasileiro.
Sugestão de leitura: O meu colega Fernando Bizzarro publicou um artigo em janeiro no qual argumenta que o Brasil está empacado na armadilha da democracia de baixa qualidade. Neste texto, o cientista político Gerardo L. Munck explica o que é exatamente essa armadilha, que também afeta outros países da América Latina. Recomendo os dois textos.
A peça que vi
Em DC, assisti à peça teatral A Walk to Respect (foto acima tirada por mim), que trata da amizade do ex-presidente Abraham Lincoln e o abolicionista Frederick Douglass. Apesar de concordarem sobre a necessidade de acabar com a escravidão, os dois divergiam sobre os caminhos através dos quais a abolição deveria acontecer. Lincoln priorizava a sobrevivência dos recém-criados Estados Unidos acima de qualquer coisa; Douglass acreditava que o fim da escravidão deveria ser o objetivo primordial. Ainda assim, havia diálogo e respeito entre os dois. A relação entre os dois é retratada no texto de Beth Duda e na poesia de Cedric Hameed, que aparece no palco como narrador das trocas entre Lincoln e Douglass. A cena em que Douglass recebe de presente a bengala que pertencia ao ex-presidente assassinado é tocante (a bengala pode ser vista na casa de Douglass, que é hoje um museu em DC). A peça termina com um poema de Hameed sobre o que acontece quando enxergamos o outro como co-cidadão: if we decide to rise and fall together, we can begin that walk to respect. É esse reconhecimento que permitiu Lincoln e Douglass serem amigos. E é esse reconhecimento que pode criar pontes em sociedades tão polarizadas como a brasileira e a norte-americana.
Os livros que li
Primeiro tive que morrer, de Lorena Portela, é praticamente uma mulher em forma de literatura: delicado e forte. Há mar, há fantasia, há paixão, há chuva, há música, há dança e, o mais importante, há o reconhecimento do que é ser mulher. Só uma coisa me incomodou no livro: os trechos de música que a autora distribui ao longo do texto. Essa pequena crítica à parte, o livro de Lorena é muito bonito e me ajudou a me entender melhor como mulher.
Também li Sophia de Mello Breyner Andresen, de Isabel Nery. Chamo a poeta portuguesa Sophia carinhosamente de minha Sophia porque estabeleci uma relação de amizade com os livros dela. Desde que li Sophia pela primeira vez, sigo pela vida me procurando na luz, no mar e no vento, como ela escreve. Quando fui ao Porto este mês, visitei a casa onde ela nasceu. Coloquei fotos no meu instagram sobre a visita e também notas sobre a biografia escrita por Nery, cuja leitura recomendo.
Por fim, sugiro que vocês olhem o catálogo da recém-criada editora Cambalache, cujo foco principal é ficção produzida no Brasil e na América Latina. Minha sobrinha Isabela perdeu a Nala, gatinha dela, em fevereiro. O livro Monalisa, que introduz o tema da perda para as crianças, ajudou Isabela a processar a morte da Nala (fico feliz de ter sido eu quem deu o livro para ela). Recomendo o título principalmente para quem convive com crianças pequenas.
Em tempo: a próxima newsletter será escrita mais uma vez de Lisboa, de onde estarei trabalhando como pesquisadora visitante no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa.
Até março!